O Irã conta os votos das eleições de 2009

Primeira página da edição online do Le Monde nas primeiras horas de 13 de junho de 2009. Foi essa página que Mitra Rahmani encontrou ao acessar o computador da universidade naquela manhã

(… ) Ao chegar à universidade, o primeiro compromisso de Mitra Rahmani era com a internet, por meio da qual acessava endereços virtuais de grandes jornais do Oriente Médio, da Europa e da América do Norte. Ela sentou‑se diante de um dos computadores conectados à rede e percorreu rapidamente alguns sites noticiosos iranianos a fim de saber notícias das eleições. A apuração parecia que entrara na reta final. Perto de 80% dos votos tinham sido contabilizados e tudo indicava que, até o fim da manhã, o país conheceria o vencedor.

Era o que também sugeria a edição eletrônica do Le Monde francês, que ela acessou em seguida. Conferiu as horas no mostrador do monitor: oito horas e trinta e quatro minutos. Dependendo da velocidade da conexão, talvez ainda tivesse tempo de visitar as páginas do L’Orient‑le Jour, de Beirute, do The New York Times, americano, e do londrino Daily Telegraph, que sempre lhe reservavam novidades interessantes, como lançamentos de novos livros e entrevistas com analistas políticos e especialistas em Oriente Médio. Ela gostava de estar informada sobre como os intelectuais estrangeiros enxergavam a situação no Irã e sentia‑se exultante quando a análise vinha acompanhada de uma conclusão favorável. (…)

Trecho onde a professora Mitra Rahmani, protagonista do núcleo iraniano de O VÉU, lê, na manhã de 13 de junho de 2009, as primeiras notícias sobre a apuração dos votos da polêmica eleição presidencial realizada no dia anterior no Irã, da qual Mahmoud Ahmadinejad sairia reeleito.

O edifício de Mitra Rahmani e Jaffar Jalaipour – TEERÃ

Todas as manhãs, depois de fazer suas orações matinais e antes de sair para a universidade, Mitra lia dois jornais iranianos — Ettelaat e Tehran Times — que recebia diariamente em seu apartamento, no penúltimo andar de um moderno e luxuoso edifício de vinte e quatro andares na esquina das avenidas Kamranieh e Farmanieh, não muito longe do antigo palácio de inverno do xá.

O bairro, estendido nas franjas do sopé das montanhas de Alborz, era uma área residencial elegante, valorizada e muito arborizada, que hospedava as opulentas villas da nova burguesia e era de fácil acesso aos endereços comerciais mais sofisticados do norte da cidade, ao centro e às principais autoestradas. (…)

Ela levantou-se e debruçou-se no peitoril da janela, avistando a paisagem melancólica dos últimos edifícios de Teerã, onde a cidade encontrava a cordilheira de Alborz, um colossal paredão de rocha cor de caramelo encimado por camadas de neve que lembravam cobertura de marshmallow. (…) Com o sol ofuscando-lhe os olhos, Mitra ficou meditando, na tentativa de visualizar alguma saída para a situação do marido. Foi quando uma ideia estalou em sua cabeça(…).

Trecho de O VÉU, mostrando a personagem Mitra Rahmani em seu apartamento, na capital iraniana.

Luis Eduardo Matta no Tungcast (parte 2)

Na segunda parte do bate-papo com Diogo Salles e Rafael Fernandes no Tungcast, Luis Eduardo Matta falou sobre O VÉU, o thriller no Brasil, a chegada do livro eletrônico, entre outros temas.  Mais uma vez, a conversa rendeu.  Para ouvir, é só clicar na imagem abaixo ou aqui.

O Véu – Diário do Comércio

Suspense brasileiro. Se Hitchcock lesse…

Renato Pompeu

Aos 35 anos, o escritor carioca Luis Eduardo Matta já tem uma experiência de 17 anos como autor de livros de suspense, gênero no qual ele é pioneiro no Brasil. Seu recém-lançado romance O Véu, publicado pela Primavera Editorial – que “adota como proposta associar a leitura ao lazer qualificado” – mostra a desenvoltura que Matta conseguiu para o seu projeto de criar “um thriller genuinamente brasileiro”. Com efeito, se trata de uma obra que pouco fica a dever aos melhores mestres internacionais do gênero e, não fosse por pequenas falhas, já estaria pronta para ser filmada à la Hitchcock. Do início ao fim, o leitor fica preso à leitura, ansioso para saber o que vai acontecer em seguida, ou qual revelação vai ser feita no próximo parágrafo.

Trata-se de uma história atraente enredada em uma trama que envolve o terrorismo internacional e o mundo brasileiro e internacional do mercado de artes plásticas, dois temas bastante populares entre os grandes públicos de ficção. Um pintor brasileiro cria um quadro que mostra uma mulher nua exceto por um véu que lhe cobre o rosto, o que desencadeia uma série de atos terroristas, presumivelmente por parte de islamitas intransigentes.

O centro do enredo é uma tradicional casa de leilões do Rio de Janeiro, cuja dona é tia do pintor do quadro, e o fator desencadeante é o leilão em que a obra vai ser posta em hasta.

Essa trama geral permite a Matta desenvolver temas de agrado do grande público, como as intrigas internacionais de terrorismo e espionagem em várias regiões do mundo, a repressão política em países como o Irã. Permite, também, ao autor explorar outros temas atraentes, como os bastidores tortuosos do mundo das artes plástica, com suas distorções em que obras autênticas de grande arte são desprestigiadas, enquanto obras sem maior valor artístico são postas nas nuvens. Os conluios entre marchands, donos de galerias, leiloeiros, curadores, editores e críticos de arte são postos a nu nas suas tramas de interesses obscuros, de contrafações e de simulacros.

Além disso, a mistura de mercado de arte com atentados terroristas permite ao autor descrever ambientes de luxo e beleza, decorações altamente elaboradas, obras de arte e de artesanato de extremo requinte, assim como fazer desfilar nas mesas refeições de gosto exótico e bebidas exclusivas para consumidores refinados.

A par dessas atrações, o livro conta acima de tudo com o desenrolar fascinante da trama, em que as surpresas vão se sucedendo quase de parágrafo em parágrafo. Para essas sensações quase hipnóticas, contribui o texto muito bem elaborado pelo autor, com um ritmo e um vocabulário que prendem o leitor e ao mesmo tempo, de maneira bem clara e didática, lições de arte e bom gosto e lições igualmente sobre os dramas internacionais contemporâneos, como os bastidores dos terrorismos e da repressão política. Não faltam os acadêmicos palestrantes e autores de livros com teses ousadas que desafiam poderes constituídos ou poderes secretos, outra grande atração para o público em geral, do mesmo modo embebida em didatismo.

As pequenas falhas são quanto à atuação da polícia carioca. Num dos atentados no Rio, aparece uma inscrição em caracteres árabes na parede do local. A polícia, surpreendentemente, não providencia a tradução da inscrição, tradução que fica por conta dos donos do local afetado e dos jornais no dia seguinte. Também a polícia não obtém mandado de prisão e não se empenha na captura de um suspeito que o delegado sabe onde mora, sabe que o suspeito se apresentou a diferentes testemunhas com nomes, profissões e nacionalidades diferentes, e foi visto no local de um atentado pouco antes de o atentado ocorrer. Apesar de todos esses indícios, vai sem escolta e sem mandado ao local onde o suspeito mora, bate à porta, não é atendido e simplesmente vai embora e deixa de se preocupar com o suspeito.

Há outras situações assim. Se o autor quis demonstrar a inépcia policial, isso não fica claro e a impressão maior que fica é que houve pequenos senões na condução da trama tão atraente e sedutora.

Resenha originalmente publicada no DIÁRIO DO COMÉRCIO em 19 de março de 2010.

Mix Cultural entrevista Luis Eduardo Matta

Luis Eduardo é um jovem e talentosíssimo autor brasileiro de ficção, com tino perfeito para tramas intrincadas e reviravoltas emocionantes. Li todas as suas obras, e é nítido sua evolução e seu crescimento como escritor. Sua última obra é “O Véu”. Suspense, atentados, situações diplomáticas, pinturas, assassinatos, segredos e adrenalina, estes são os ingredientes que tornam a obra um dos melhores livro de ficção da atualidade.

Entrevista:

Nasci no Rio de Janeiro, onde sempre morei, em novembro de 1974. Tenho, portanto, 35 anos. Lancei meu primeiro livro em 1993, aos 18 anos. Fiquei nove anos sem publicar e só retornei em 2002.

Publiquei, até o momento, os seguintes livros, entre thrillers para os públicos adulto e juvenil:
– Conexão Beirute-Teeran (1993)
– Ira Implacável: Indícios de uma Conspiração (2002)
– 120 Horas (2005)
– Morte no Colégio (2007)
– Roubo no Paço Imperial (2008)
– O Rubi do Planalto Central (2009)
– O Véu (2009)

Luis, o mercado editorial no Brasil é pequeno e bem fechado, como foi sua caminhada até este maravilhoso sucesso de sua carreira?
Bom, o “maravilhoso sucesso de sua carreira” eu vou creditar à sua gentileza e generosidade. Não alcancei esse nível ainda. O meio editorial é complicado, muito competitivo e o mercado é pequeno, como você bem frisou na sua pergunta e eu sempre enfrentei muitas dificuldades. O que me tem movido é a minha paixão pela escrita e pela literatura e muita perseverança. Sem perseverança, as coisas dificilmente acontecem. Mas eu estou longe de me considerar alguém que “já chegou lá”. Continuo, isso sim, na caminhada e devo permanecer nela por muito tempo ainda.

De onde tira inspiração para temas tão distintos e profundos?
De muitos lugares: da vida cotidiana, da arte em todas as suas manifestações e da minha curiosidade sobre diferentes assuntos. É fascinante misturar numa trama de suspense e mistério temas que, aparentemente, pouco ou nada têm em comum. É um grande desafio. Não faço uma literatura confessional. O que me atrai no ato de escrever é justamente recriar na ficção situações que eu não viveria na realidade, dar vida a personagens e jogá-los no mundo.

Como foi sua experiência para escrever para o público infantojuvenil?
Extraordinária. Foi a minha grande descoberta nesta última década. Tenho, há muito tempo, uma preocupação com a formação de leitores no Brasil. Escrever para o público juvenil foi a forma que eu encontrei para fazer a minha parte, aproveitando a experiência que eu já tinha na criação de thrillers adultos. Tem dado certo. A ficção de suspense e mistério é ótima formadora de leitores, sobretudo por duas razões: vale tanto para garotos quanto para garotas e desperta uma curiosidade direta no leitor, que quer ver esclarecido o mistério da trama, o que o estimula a mais facilmente virar as páginas rumo ao final do livro.

Quem lê suas obras percebe nitidamente sua evolução literária. Conte-nos um pouco esta trajetória.
Acho que ela reflete a minha evolução como ser humano. No sentido que, a cada ano que passa, sinto que compreendo melhor as pessoas e o mundo, aceito mais certas circunstâncias e aprendo mais sobre a multiplicidade da realidade. Por menos confessional que seja um romance, ele não deixa de ser um trabalho autoral. Foi como eu disse há pouco: continuo na minha caminhada e isso vale, também, para o meu aprendizado humano e existencial.

Luis sua mente é fascinante, você consegue dar vida ao que escreve, e isto é muito raro em nossos autores.
É uma mente que não abandonou o mundo da fantasia. A fantasia é uma característica da infância que o processo de amadurecimento tenta destruir ou, ao menos, sufocar. No meu caso isso nunca aconteceu porque a minha transição da infância para a idade adulta se deu de uma forma muito suave, natural, sem grandes rupturas. Aos 17 anos eu senti que precisava extravasar esse lado fabulador. Foi uma necessidade quase psiquiátrica (risos). Ao mesmo tempo, tenho os pés muito firmes na realidade. Procuro ver as coisas como elas são, com o mínimo possível de interferência ideológica, religiosa, etc. O que às vezes é muito difícil. Então acho que essa simbiose intensa entre fantasia e realismo é o que dá vida à minha ficção.

O Véu é uma prova maravilhosa de seu talento, como está a receptividade da obra no Brasil?
Muito boa. Tenho recebido, através do meu site, mensagens muito positivas de leitores. A vendagem também está sendo ótima. É claro que muita gente não vai gostar do livro, o que é natural e estou sempre preparado para as críticas negativas, pois sei que elas fazem parte do jogo. Mas só o fato de o romance existir e estar circulando me alegra, pois foi um livro que escrevi com grande paixão.

Suas considerações finais:
Acredito no poder positivamente transformador da leitura, até para fins utilitários. Temos um longo caminho a percorrer no Brasil neste sentido e todo o meu esforço tem sido com esse propósito. O Brasil só se desenvolverá plenamente quando tivermos uma população mais instruída, que saiba ler e interpretar textos e possa, com isso, estar habilitada a pensar e a contestar. Sei que é utópico, sei que é difícil, mas é possível. Enquanto eu achar que o thriller é um caminho para atrair pessoas para o texto escrito e para a literatura brasileira, seguirei escrevendo nesta linha. O Brasil crescerá quando os livros estiverem no coração do povão.

Entrevista concedida a Roberta Souza. Originalmente publicada no MIX CULTURAL em 24 de fevereiro de 2010.

O Véu – Tribuna de Indaiá

Nos últimos dias de 2009, a jornalista Silvia Bolívar abriu, mais uma vez, seu espaço na Tribuna de Indaiá, em Indaiatuba (SP), para falar da literatura de Luis Eduardo Matta e do lançamento de O VÉU:

O Véu
O carioca Luís Eduardo Matta é um dos autores brasileiros que está no mesmo nível de Joseph Finder ou Robert Ludlum. Seus livros anteriores são verdadeiros filmes de ação. Esta é uma boa dica de leitura para as férias. Quem leu Luís Eduardo se tornou fã de imediato. Descendente de libaneses, suas obras envolvem detalhes islâmicos. Aqui, A Casa Quintanilha se prepara para o leilão do quadro “O Véu”, obra condenada pelo islamismo e que se julgava queimada num incêndio. O quadro tem um passado pesado e Araci Quintanilha se vê às voltas com ameaças terroristas. O Irã está às vésperas da eleição de 2009 e o quadro se torna uma grande ameaça.

Entrevista – Rádio Unesp FM

Em 2 de dezembro de 2009, dia do lançamento de O VÉU em São Paulo, Luis Eduardo Matta concedeu uma entrevista ao programa Perfil Literário da Rádio Unesp FM, onde falou sobre seu novo livro, sua vida e sua carreira como escritor.

Para ouvir, é só clicar no banner acima ou aqui.

O Véu – Prosa & Verso

Na sua edição de sábado, 16 de janeiro de 2010, o Prosa & Verso, suplemento de literatura do jornal O Globo, registrou, numa nota, o lançamento de O VÉU.

A arte contemporânea refém da insensatez

LUIS EDUARDO MATTA

Artigo originalmente publicado no Digestivo Cultural, em 16 de maio de 2008

Entre as vantagens de se reproduzir passagens de um trabalho literário de nossa própria autoria, a mais óbvia é a dispensa de solicitar uma autorização que, muitas vezes, não é dada. Uma outra, igualmente relevante, é a tranqüilidade de saber que o autor ou seus herdeiros não nos procurarão enfurecidos, escoltados por uma tropa de advogados, acusando-nos de haver usado o texto de forma indevida, para ilustrar uma argumentação indecorosa ou infame. No terreno das desvantagens, a maior delas talvez seja a de soar vaidoso e presunçoso. Juro que não foi o meu propósito ao transcrever os parágrafos a seguir:

(…)Araci Quintanilha fitou o homem demoradamente. Aquela afirmação soara irônica além da conta.
― Desculpe, mas não entendi o sentido do seu comentário ― ela respondeu, com a voz seca. ― Sou leiloeira há muitos anos e sempre tive uma grande alegria em trabalhar com arte. Desde que, é lógico, ela tenha qualidade estética e transmita sensibilidade.
― Não me interprete mal ― o embaixador não parecia constrangido. ― O que eu quis dizer foi que deve ser difícil trabalhar com arte nos dias de hoje, quando a produção artística é tão… duvidosa, para dizer o mínimo.
― Nem toda a produção contemporânea é duvidosa.
― É verdade ― o sarcasmo acentuou-se no rosto de Olivier de Grammont. ― Ela também pode ser perigosa.
Araci sentiu um tremor sombrio, como se um manto gelado lhe houvesse cingido o corpo. A arte realmente podia ser muito perigosa. Lembrou-se do quadro.

Aquele quadro…
Por quanto tempo mais ele lhe despertaria aquela sensação paralisante de angústia e de um medo quase infantil?(…)

Esta é uma cena do meu novo thriller, O Véu, que está praticamente pronto desde o ano passado. Se ele não foi publicado ainda, isso se deve, fundamentalmente, a duas razões: a principal delas é que, nos últimos dois anos, eu tenho dedicado mais tempo à minha literatura juvenil. Lancei um livro nesta linha em 2007, estou publicando outro neste primeiro semestre de 2008, acabo de concluir um terceiro, estou iniciando um quarto e, como tenho por norma participar ativamente de cada novo lançamento, achei por bem não publicar mais de um livro ao mesmo tempo, uma vez que isso tumultuaria enormemente o meu já sobrecarregado dia-a-dia. A segunda razão está relacionada ao próprio livro. A ação de O Véu transcorre ao longo do mês de junho de 2009 e tem como um dos cenários o Irã, que realizará eleições presidenciais, justamente em… junho de 2009. Os dias exatos das duas rodadas eleitorais, no entanto, não foram ainda fixados e eu estou apenas no aguardo da chegada de um informe de Teerã confirmando as datas e a listagem dos principais prováveis candidatos, para poder inserir as informações no livro e, enfim, dá-lo por finalizado.

O plano de fundo principal de O Véu é o mundo das artes plásticas. O livro teve três versões até a sua (quase) conclusão no ano passado: a primeira foi escrita entre setembro de 1999 e abril de 2001; a segunda, entre dezembro de 2004 e abril de 2006; e a terceira (na verdade, uma reformulação e ampliação da segunda), entre janeiro e maio de 2007, meses que passei praticamente recluso. As pesquisas para desenvolvê-lo foram as mais extensas que já realizei até hoje para um romance, e todo o material reunido ao longo desses quase oito anos constituem, provavelmente, uma das maiores seções dos meus arquivos particulares. Nele, há, desde um exemplar da constituição iraniana, até catálogos de galerias, leilões e exposições no Rio de Janeiro, em São Paulo, na Europa e no Irã (sim, existe vida cultural no Irã. Acessem o site Tehran Avenue e vejam uma pequena amostra). Sempre gostei de arte e, durante anos, contei com a orientação de um tio leiloeiro, José Kanan Matta, com quem conversava muito sobre o assunto. A partir do momento em que esbocei as primeiras linhas de O Véu, contudo, as minhas impressões sobre a arte e, mais particularmente sobre a arte produzida hoje, mudaram bastante e eu passei a ter uma visão bastante ampla e não muito animadora de como se movimentam as engrenagens desse mundo que, de glamoroso, tem quase que somente a fachada.

O diálogo reproduzido mais acima se dá entre uma leiloeira e marchande brasileira e um diplomata francês. Ambos estão presentes no coquetel de inauguração de uma mostra que reúne pinturas de artistas célebres do século XX, como Matisse, Derain, Léger e Picasso, e fazem uma comparação entre a arte consagrada por esses grandes nomes e a arte produzida mais recentemente. Não há como negar que o abismo existente entre ambas é brutal e torna-se ainda mais assustador, se o paralelo for feito com artistas barrocos como Caravaggio, Velázquez e Vermeer e renascentistas, como Rafael, Michelangelo e Leonardo Da Vinci, isso sem falar nos impressionistas, românticos, neoclassicistas etc.

Não quero dizer, com isso, que não existam pintores, desenhistas, gravuristas e escultores talentosos em atividade. Eles existem sim, e em bom número. O que ocorre é que, por se dedicarem, muitas vezes, a estilos que priorizam uma figuração, digamos, mais tradicional em detrimento de experimentações estéticas e conceituais débeis e extravagantes, acabam sendo relegados pela crítica especializada à condição de artistas menores, não conseguem bons espaços para expor e, conseqüentemente, não têm a sua obra devidamente analisada e difundida. Por outro lado, abundam nas galerias e grandes salões e bienais de arte, trabalhos pseudovanguardistas, medonhos e equivocados, que vão de instalações grotescas (algumas chegam a ser aterrorizantes) a montagens pueris ou de mau-gosto que, em vez de por a nu a escassez de talento e de sensibilidade de seus autores, ostentam, inexplicavelmente, uma falsa pátina de inteligência e renovação, que, não raro, deixa os espectadores aturdidos e reféns da incompreensão e da perplexidade ― quando não da repulsa.

Assim como muita gente, já tive a chance de testemunhar inúmeros casos que ilustram essa realidade. Um bom exemplo foi uma mostra de um artista plástico e poeta catalão chamado Joan Brossa, que visitei, há uns dois ou três anos, com meu amigo e compadre Daniel Malaguti, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Eu me recordo que uma das primeiras peças que vimos foi uma escada de montar ― dessas feitas de ferro ou alumínio, com cinco ou seis degraus. Ingenuamente, pensamos que ela havia sido esquecida ali por algum funcionário da manutenção do museu, mas um segurança logo esclareceu que ela fazia parte da mostra e apontou para o chão. Vimos, então, que cada um dos quatro pés da escada estava apoiado num carrinho de brinquedo. Apesar do espanto, aquilo não foi exatamente uma surpresa, pois eu, Daniel e Ram Rajagopal já perdemos a conta das roubadas em que nos metemos no circuito cultural. Uma das mais notórias foi a mostra de um artista, do qual não me lembro o nome (se é que cheguei a registrá-lo), cujo um dos trabalhos nada mais era do que um copo comum de vidro, vazio. Quer dizer: o sujeito, num lance de pretensa genialidade, apanhou um copo na sua cozinha e colocou-o, na cara dura, sobre um expositor. Não tenho certeza, mas até onde me lembro, havia a intenção de transmitir uma mensagem qualquer com aquele “Copo cheio de ar” (acho que era esse o nome da obra). Talvez uma alusão à própria caixa craniana do artista que, no lugar de um cérebro, conteria apenas ar.

Em 2004, correu o mundo a notícia de que uma faxineira do Museu Tate Britain, em Londres, havia jogado fora, por engano, um saco de lixo que integrava uma instalação de Gustav Metzger, artista alemão radicado na Inglaterra que criou, em 1959, um troço pavoroso que ficou conhecido como o movimento da Arte Autodestrutiva. Ao que parece, a “obra de arte” foi recuperada pelo museu, mas eu, caso fosse o diretor do Tate Britain, teria premiado a faxineira, promovendo-a a curadora do museu, uma vez que ela provou ser grande conhecedora de arte. Mais recentemente, um delinqüente costarriquenho chamado Guillermo “Habacuc” Vargas, exibiu, num evento na América Central, uma instalação que consistia num cachorro de rua faminto e doente amarrado a uma corda. O animal, supostamente, teria morrido de inanição ou de alguma moléstia decorrente da falta de tratamento veterinário. A crueldade do ato já é uma aberração em si, mas igualmente chocantes foram as justificativas apresentadas pelo “artista”: ele alegou que sua intenção havia sido a de homenagear um nicaragüense morto dois anos antes por cães numa cidade da Costa Rica e, de quebra, acusou de hipócritas todos aqueles que protestaram contra ele, pois “ninguém ligaria se o cachorro estivesse passando fome nas ruas”. Se o pensamento de Habacuc tiver lógica, é provável que, numa exposição futura, ele prenda uma pessoa num pau-de-arara e coloque alguém ao lado para surrá-la e dar-lhe choques elétricos, como uma forma de protesto por todas as torturas praticadas pelas ditaduras latino-americanas.

O urinol de Marcel Duchamp

A origem dessa barafunda em que se transformou a arte nos dias de hoje atende pelo nome de Marcel Duchamp, artista que, em 1917, expôs um urinol de louça num salão em Nova York para protestar contra o conservadorismo acadêmico. Tido como um marco do movimento Dada, o urinol de Duchamp deflagrou um processo desgovernado de desconstrução e relativização do conceito de arte, a ponto de, hoje, qualquer coisa ― até um cão morrendo de fome ― poder ser considerada obra de expressão artística, já que os critérios de avaliação de um trabalho tornaram-se caóticos, ilógicos e disparatados. Quem quer que reaja a essa tese é acusado de reacionário, antiquado, elitista e, muitas vezes, ignorante e alienado. Pessoalmente, acredito que, ao expor o urinol numa época como a década de 1910, Duchamp pretendeu, acima de tudo, fazer uma provocação em tom de galhofa ao establishment de então. Gosto de imaginar que James Joyce teve intenção semelhante ao escrever e publicar Ulisses, embora muita gente considere essa opinião uma heresia maior do que, por exemplo, expor ― como fez o inglês Chris Ofili, numa coletiva em 1999 ―, uma pintura da Virgem Maria salpicada de excremento de elefante. Caso estivesse vivo, Duchamp, certamente, morreria de rir com toda a celeuma formada em torno de seu nome e, talvez, se horrorizasse ao perceber no que o seu ato de protesto resultou. O certo é que o urinol daquele revolucionário ano de 1917 alterou sensivelmente a percepção dos artistas e estudiosos em relação à arte, de modo que, a partir de dado momento, passou a prevalecer a idéia de que uma obra, para ser legitimada e atingir certo grau de credibilidade e reconhecimento, precisaria inaugurar uma estética nova que contestasse e, se possível, rompesse com as anteriores, renovando continuamente a linguagem e a forma de se pensar e produzir arte.

É preciso reconhecer, porém, que, sob esse aspecto, as artes plásticas acompanharam o calendário veloz do século XX, ao longo do qual a sociedade ocidental se renovou num ritmo e numa intensidade nunca antes vistos. Não foi diferente com a tecnologia, com a moda, com a arquitetura e, sobretudo, com os costumes. O problema é que, no caso da arte, essa busca constante pelo novo, acompanhada de uma obsessão igualmente frenética pela ruptura com modelos antigos, levou a um esgotamento. A arte viciou-se numa espécie de volúpia vanguardista e os artistas, aprisionados por conceitos estéticos e criativos limitados que, erroneamente consideram libertários, encontram-se, hoje, encurralados, aparentemente carentes de referenciais e praticando a ruptura pela ruptura, a transgressão sem um objetivo definido, numa época em que praticamente todas as normas já foram devidamente transgredidas, e na qual todos os conceitos possíveis foram postos em xeque. Ou seja, a transgressão que, em 1917 com Duchamp, teve uma função renovadora, hoje nada mais é do que uma tomada pessoal de atitude, com objetivos meramente mercadológicos ou de culto à própria imagem. As chamadas “anti-arte” e “não-arte”, que tinham uma proposta contestadora, transformaram-se em arte convencional exibida, hoje, nos grandes museus, assim como a contracultura foi absorvida pela cultura de massa. Não custa relembrar a celebração, em 1999, dos trinta anos do mítico Festival de Woodstock, que contou com o patrocínio de várias corporações, sinalizando, assim, a sua plena incorporação à sociedade de consumo tão apaixonadamente criticada pelos idealistas de inspiração hippie que compareceram à edição original do evento, em 1969.

Algumas pessoas que discordam do meu ponto de vista, já me acusaram de torcer o nariz para o “contemporâneo” e o experimental, o que não é verdade. A modernidade é extraordinária e a experimentação é importantíssima em qualquer segmento cultural, mas há que existir certos ajuizamentos. O próprio conceito de contemporaneidade é perigoso, uma vez que aquilo que é moderno hoje envelhecerá em algum momento. Isto é: caso a única virtude de uma obra seja a sua modernidade, quando surgir algo ainda mais moderno, ela correrá grande risco de perder todo o seu valor. A contemporaneidade não pode, de forma alguma, ser tratada como um estilo. É preciso que o caráter moderno de um trabalho venha acompanhado de outros elementos, que haja uma preocupação, também, com a qualidade, a sensibilidade, o conteúdo, o talento e o bom-senso. Tudo isso anda em falta e é por essa razão que uma instalação de Cildo Meireles acaba obtendo mais visibilidade do que uma pintura de Pietrina Checcacci.

Num mundo onde a transgressão tornou-se norma estabelecida coletivamente, talvez a única subversão possível nas artes plásticas seja o elogio à “caretice” figurativa. Em O Véu um pintor é assassinado depois de expor um quadro com uma mulher muçulmana seminua. Embora talentoso, ele precisou usar contatos familiares dentro do mercado de arte para atingir uma projeção que teria sido improvável de outra forma, já que suas telas eram claramente figurativas e emulavam estilos pictóricos de épocas pretéritas. As autoridades islâmicas que denunciaram a pintura como ofensiva e vilipendiosa, só o fizeram porque captaram, de imediato, o que ela representava. Não foi necessário ouvir a explanação verbosa e intrincada de um crítico ou do próprio pintor explicando o seu significado e a inteligente e engajada mensagem que trazia nas entrelinhas. Caso o artista, em vez de uma pintura com traçado tradicional, houvesse optado por montar uma instalação, talvez jamais atraísse para si tanta polêmica. E o diálogo do início deste artigo, entre a atordoada leiloeira brasileira em rota de fuga por conta de uma ameaça de morte e o diplomata francês, cuja presença na exposição não se deveu apenas ao seu gosto pelos mestres do século XX, não teria acontecido. Uma coisa, porém, eu garanto: na galeria onde tem lugar a cena, os urinóis encontram-se apenas nos banheiros, bem presos às paredes e desempenhando unicamente a função para a qual foram concebidos. Quem sabe, ao fazer o seu protesto, em 1917, Marcel Duchamp não estivesse, na verdade, sendo visionário e criando uma metáfora do destino que boa parte da arte produzida sob inspiração dele deveria ter? Muito embora eu considerasse a lixeira uma alegoria ainda mais apropriada.

Em tempo
Soube, recentemente, que um quadro de Lucian Freud, que considero um dos grandes artistas vivos, foi arrematado num leilão da Christie’s, em Nova York, por mais de 30 milhões de dólares. O quadro chama-se “Benefits Supervisor Sleeping“, foi pintado em 1995 e é uma figuração. Ainda há ilhas de esperança neste mar de insensatez.

Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 16/5/2008

A sombria véspera do leilão de “O Véu”

Rio de Janeiro, junho de 2009

Chovia forte desde o entardecer. De repente, uma sucessão de lampejos encobertos pelo nevoeiro gelado clareou o topo do Corcovado, enquanto os estrondos dos trovões reverberavam no ar. A estátua resplandecente do Cristo Redentor surgiu momentaneamente por entre uma cortina densa de nuvens, parecendo debater ‑se na vã tentativa de permanecer heroicamente visível em meio à vastidão escura, mas o céu noturno não tardou a ocultá‑la novamente, derrotando, assim, a última trincheira que ainda resistia à assustadora entrada antecipada do inverno úmido na cidade do Rio de Janeiro.

O mar estava em fúria e ameaçava repetidas vezes engolir a areia das praias. Um vendaval cortante e pegajoso, embalado pela chuva, alastrava ‑se pelas ruas encharcadas e melancólicas. O Rio de Janeiro, vazio, silencioso, parecia abandonado à própria sorte.

Trecho da abertura da primeira parte de O VÉU, na véspera do leilão que influenciará toda a trama.

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