O Irã que pouco aparece na mídia ocidental (2)

O governo do Irã vem, nos últimos tempos, endurecendo ainda mais um regime já bastante restritivo no que se refere a costumes e liberdades. Práticas como o apedrejamento de criminosos, a prisão de opositores, a negação insistente do Holocausto e a repressão a órgãos de imprensa, artistas e jornalistas são altamente condenáveis e deveriam ser prescritas de qualquer regime que se pretenda civilizado e democrático.

Ainda assim é preciso que se diga de que o Irã é muito mais do que isso. Não se trata de fazer uma defesa ou um ataque ao país, mas de tentar enxergar  objetivamente a sua realidade complexa e multifacetada, que não cabe dentro de estereótipos. Por essa razão, damos continuidade ao post de 8 de dezembro passado, e mostramos aqui mais um pouco das facetas menos conhecidas da terra dos aiatolás, que raramente são vistas na grande mídia ocidental (mas que aparecem no thriller O VÉU).

Loja da Benetton, em Teerã

Shopping center Golestan (Teerã)

Vida noturna em Teerã

Mulheres diplomadas em universidade iraniana

O Irã que pouco aparece na mídia ocidental (1)

Nações e sociedades são complexas e, via de regra, não cabem nos estereótipos nos quais uma boa parte da mídia e da literatura ocidentais, contaminada por preconceitos e desinformação, sempre  apostou.

Casamento judaico em sinagoga iraniana e jovens numa loja de cosméticos em Teerã

O Irã não foge à regra. Em O VÉU são mostradas algumas faces menos conhecidas do país, o que torna sua descoberta mais fascinante e a leitura do livro mais saborosa e surpreendente.  Nem todas as cenas exibidas  nas imagens deste post estão reproduzidas no livro, mas através delas já dá para se ter uma ideia de como a trama se distancia do lugar-comum presente em muitos thrillers internacionais ambientados no Oriente Médio.

Equipe feminina iraniana de canoagem e estação de esqui nas montanhas de Alborz

O Irã conta os votos das eleições de 2009

Primeira página da edição online do Le Monde nas primeiras horas de 13 de junho de 2009. Foi essa página que Mitra Rahmani encontrou ao acessar o computador da universidade naquela manhã

(… ) Ao chegar à universidade, o primeiro compromisso de Mitra Rahmani era com a internet, por meio da qual acessava endereços virtuais de grandes jornais do Oriente Médio, da Europa e da América do Norte. Ela sentou‑se diante de um dos computadores conectados à rede e percorreu rapidamente alguns sites noticiosos iranianos a fim de saber notícias das eleições. A apuração parecia que entrara na reta final. Perto de 80% dos votos tinham sido contabilizados e tudo indicava que, até o fim da manhã, o país conheceria o vencedor.

Era o que também sugeria a edição eletrônica do Le Monde francês, que ela acessou em seguida. Conferiu as horas no mostrador do monitor: oito horas e trinta e quatro minutos. Dependendo da velocidade da conexão, talvez ainda tivesse tempo de visitar as páginas do L’Orient‑le Jour, de Beirute, do The New York Times, americano, e do londrino Daily Telegraph, que sempre lhe reservavam novidades interessantes, como lançamentos de novos livros e entrevistas com analistas políticos e especialistas em Oriente Médio. Ela gostava de estar informada sobre como os intelectuais estrangeiros enxergavam a situação no Irã e sentia‑se exultante quando a análise vinha acompanhada de uma conclusão favorável. (…)

Trecho onde a professora Mitra Rahmani, protagonista do núcleo iraniano de O VÉU, lê, na manhã de 13 de junho de 2009, as primeiras notícias sobre a apuração dos votos da polêmica eleição presidencial realizada no dia anterior no Irã, da qual Mahmoud Ahmadinejad sairia reeleito.

O edifício de Mitra Rahmani e Jaffar Jalaipour – TEERÃ

Todas as manhãs, depois de fazer suas orações matinais e antes de sair para a universidade, Mitra lia dois jornais iranianos — Ettelaat e Tehran Times — que recebia diariamente em seu apartamento, no penúltimo andar de um moderno e luxuoso edifício de vinte e quatro andares na esquina das avenidas Kamranieh e Farmanieh, não muito longe do antigo palácio de inverno do xá.

O bairro, estendido nas franjas do sopé das montanhas de Alborz, era uma área residencial elegante, valorizada e muito arborizada, que hospedava as opulentas villas da nova burguesia e era de fácil acesso aos endereços comerciais mais sofisticados do norte da cidade, ao centro e às principais autoestradas. (…)

Ela levantou-se e debruçou-se no peitoril da janela, avistando a paisagem melancólica dos últimos edifícios de Teerã, onde a cidade encontrava a cordilheira de Alborz, um colossal paredão de rocha cor de caramelo encimado por camadas de neve que lembravam cobertura de marshmallow. (…) Com o sol ofuscando-lhe os olhos, Mitra ficou meditando, na tentativa de visualizar alguma saída para a situação do marido. Foi quando uma ideia estalou em sua cabeça(…).

Trecho de O VÉU, mostrando a personagem Mitra Rahmani em seu apartamento, na capital iraniana.

O contraditório mosaico feminino iraniano

A professora Mitra Rahmani, de 46 anos, entrou com seu carro, um vistoso Samand azul, no campus da Universidade Shahid Beheshti, na zona norte de Teerã (…). Vestia um sóbrio conjunto de calça e blusão marrom de gabardina, que lhe cobria todo o corpo, e usava dois anéis de ouro, o metal das mulheres. A maquiagem era discreta: limitava-se a um batom muito leve, quase imperceptível, sobre os lábios. Ela ajeitou a enorme echarpe preta de seda grossa em torno do rosto, que adotara havia um bom tempo em substituição ao tradicional chador, deixando entrever algumas mechas dos brilhosos cabelos castanho-escuros (…). Levava nos braços duas pastas chatas com apostilas e programas de aula e um exemplar da revista feminina Zanan , além de dois livros, ambos edições francesas (…). Mitra sentou-se diante de um dos computadores conectados à rede e percorreu rapidamente alguns sites noticiosos iranianos a fim de saber notícias das eleições. A apuração parecia que entrara na reta final.

Neste trecho de O VÉU, somos apresentados a Mitra Rahmani, protagonista do núcleo iraniano do thriller de Luis Eduardo Matta. Mitra é uma professora universitária, culta, independente, corajosa, autônoma e apaixonada por seu trabalho. No livro, ela simboliza uma das muitas contradições que marcam o Irã contemporâneo. Desde a Revolução de 1979, quando a Sharia (a lei islâmica) passou a ser aplicada no país, as mulheres iranianas são obrigadas a cobrir a cabeça com um véu, seus depoimentos num tribunal valem a metade do de um homem, são proibidas de exercer a magistratura e as prostitutas e adúlteras podem ser punidas com o apedrejamento até a morte. Por outro lado, 60% das vagas nas universidades são ocupadas por mulheres, a força de trabalho feminina, que nos tempos pré-revolução não chegava a 15% do total, atualmente gira em torno de 30% e elas estão presentes em praticamente todas as atividades econômicas. Existem tanto mulheres na polícia, nos esportes e conduzindo ônibus nas ruas de Teerã, como no parlamento e no poder executivo.

Jovens iranianas numa lan house e uma motorista de ônibus em Teerã

Recentemente, a ginecologista, professora universitária e ex-deputada Marzieh Vahid-Dastjerdi foi nomeada pelo presidente Mahmoud Ahmadinejad ministra da Saúde do novo governo, eleito no polêmico pleito de junho de 2009. É a terceira mulher a ocupar um ministério na história do Irã. Durante a administração do presidente Mohammad Khatami (1997-2005), o país contou com uma vice-presidente, a cientista Masoumeh Ebtekar. São circunstâncias impensáveis em muitos dos países do Oriente Médio, como a Arábia Saudita, onde as mulheres não ocupam mais do que 5% do mercado de trabalho e onde elas são proibidas de votar, dirigir, andar de bicicleta e de manter contas individuais em bancos sauditas sem a autorização dos maridos.

A ex-vice-presidente Masoumeh Ebtekar (E) e a ministra Marzieh Vahid-Dastjerdi

Existe, hoje, no Irã uma crescente tomada de consciência por parte da sociedade visando a uma abertura do regime, ao abrandamento de regras, a mais liberdade e igualdade e as mulheres estão à frente desse movimento. Organizadas, politizadas e instruídas, elas constituem, hoje, o principal agente de mudanças no país e vêm atuando em várias frentes. Não apenas nos protestos onde tomam cada vez mais parte, como, principalmente, em pequenas, porém significativas transgressões do dia-a-dia, como deixar partes do cabelo à mostra, vestir roupas coloridas, se maquiar, se comunicar com o mundo via internet e se misturar livremente a rapazes em festas clandestinas que costumam varar noites, embaladas pelo som de ritmos ocidentais, álcool e muita sensualidade. Assim, elas vão ocupando cada vez mais espaço na sociedade e, com isso, minando aos poucos os alicerces da República Islâmica, desafiando sua ideologia e fazendo com que a opressão perca sua legitimidade e sua própria razão de existir.

Será o ocaso da República Islâmica?

Em junho de 2009, enquanto as ruas de Teerã ardiam com os choques entre a polícia e os manifestantes contrários à suposta fraude ocorrida nas eleições presidenciais que deram mais um mandato ao polêmico Mahmoud Ahmadinejad, a professora universitária Mitra Rahmani, uma das protagonistas de O VÉU,  se encontrou em sigilo com um ministro do governo num parque afastado da capital iraniana. Eis um trecho da cena:

“(…) O rosto de Mitra se contraiu num esgar amargo.

— O senhor fala como se a República Islâmica tivesse muitos anos de vida pela frente — ela declarou, maldosamente.

O ministro balbuciou, como se não tivesse compreendido:

— Perdão?

— O senhor mesmo mencionou a revolta da população depois das eleições. O novo governo não terá tanta legitimidade junto ao povo. E o próprio regime saiu enfraquecido. O banho de sangue que está acontecendo no país apressou a morte da República Islâmica, que pode ter começado a desmoronar neste mês de junho de 2009. Não se esqueça de que a Revolução de 1979 foi uma revolução popular. Se foi o povo que colocou os aiatolás no poder, será o povo que irá tirá-los de lá. E não há absolutamente nada que vocês possam fazer para impedir isso. (…)”

veja.teera.11.2009

Lendo a matéria acima, publicada na revista Veja esta semana, fica a pergunta: será que Mitra Rahmani tinha razão nas suas previsões? A República Islâmica, de fato, caminha para o seu fim?