O doce refúgio de Lourenço Monte Mor em Maricá

Araci Quintanilha sentiu uma onda quente de alívio envolver seu corpo quando, enfim, parou o carro diante do muro baixo da casa de Lourenço Monte Mor, de frente para a praia. (…)  Só mesmo o carinho por Lourenço, sobrinho a quem amava como a um filho, para forçá‑la a enfrentar os sessenta quilômetros desde o Rio de Janeiro até o litoral de Maricá.  (…)

A casa onde Lourenço estava morando temporariamente pertencia ao pai dele, Aníbal Monte Mor, cunhado de Araci. Aníbal fora casado com a única irmã de Araci, Iara, que falecera num acidente de automóvel quinze anos atrás. Era uma casa de praia, usada para férias e fins de semana, mas que Aníbal não visitava havia tempos. A construção, graciosa, tinha dois andares, telhado de telhas vermelhas, janelas altas de peroba e era rodeada por um pequeno terreno arenoso, pontilhado por fileiras de casuarinas e coqueiros. A praia, extensa e elegante, de areias alvíssimas e banhada por um mar escuro e bravio, estendia‑se logo abaixo e estava quase vazia, apesar de ser verão. Isso porque uma cortina cinzenta recobria o céu e ventava tanto que as árvores chegavam a vergar, dando a impressão de que, a qualquer momento, se partiriam em duas. (…)

Restaurante Negresco – Rio de Janeiro

(…) O táxi parou suavemente diante do Centro Empresarial Rio, na praia de Botafogo, e Araci Quintanilha, vestindo um terninho preto de lã grossa, desceu primeiro, cobrindo os ombros com uma comprida e grossa pashimina vermelha para se proteger do vento. Da calçada, a leiloeira alta e elegante, hoje com 52 anos, forçou os olhos para observar a fachada envidraçada do restaurante Negresco. Uma porta de duas bandas de mogno com almofadas, ladeada por dois vasos com araucárias. Uma das vitrines da entrada exibia uma garrafa de vinho, uma ânfora de prata e duas taças de cristal lapidado rodeadas de pétalas de rosa. A outra, maior e mais alta, um galhardete anunciando a realização do Festival de Cozinha Medieval que terminaria naquela noite.


Araci soltou um suspiro de desânimo. Ela estava exausta e o dia seguinte seria uma verdadeira prova de fogo (…). Mas não queria desapontar o marido. Bartolomeu Saraiva — mais conhecido como Bartô — além de chef e dono do restaurante era também o organizador do festival, cujos pratos incumbira‑se de preparar pessoalmente (…).

Araci esperou o pai pagar a corrida e descer do táxi para, gentilmente, oferecer‑lhe o braço. Cada qual segurando um guarda‑chuva fechado, subiram juntos os sete degraus de granito castanho que ligavam a calçada à comprida alameda ajardinada do centro empresarial, ornada de palmeiras imperiais, folhagens e árvores de copas generosas e floridas (…). Dali a menos de vinte e quatro horas, Araci comandaria o leilão mais insólito de sua vida (…).

Trecho dos capitulos iniciais de O VÉU, onde é apresentado o elegante restaurante do chef Bartô Saraiva — marido da protagonista Araci Quintanilha —, um dos cenários cariocas do livro.

A Casa Quintanilha de Leilões – Rio de Janeiro

Em agosto de 1999, com o esboço de O VÉU razoavelmente estruturado e as primeiras pesquisas já em andamento, sai às ruas do Rio de Janeiro a fim de encontrar os cenários que eu imaginara para a trama. Foram duas semanas de andanças. Minha principal preocupação – comum a todos os meus livros – era fazer com que a história parecesse o mais real possível. Logo, os cenários precisariam estar fortemente conectados à realidade. Foi quando, numa tarde perambulando por Botafogo, encontrei no final da rua São Clemente, quase na divisa entre Botafogo e Humaitá, o casarão ideal para abrigar a Casa Quintanilha de Leilões, o cenário mais emblemático de O VÉU.

A casa estava desocupada e seu abandono era visível, embora não lhe ofuscasse a opulência. Havia, na entrada, uma placa de “aluga-se”, o que era um bom sinal, já que se a casa estivesse à venda correria o risco de ser demolida, o que em nada interessava ao meu projeto. Alguns dias depois, voltei ao local munido de um caderno pequeno e de uma caneta, para anotar todos os detalhes arquitetônicos e tentar reproduzir em palavras a atmosfera da área. Ao chegar, um senhor varria as folhas da calçada em frente. Era uma oportunidade de ouro. Apresentei-me a ele, disse que estava interessado em alugar a casa e perguntei se poderia conhecê-la por dentro. Ele era uma espécie de caseiro, contratado para manter o jardim relativamente limpo, vigiar e impedir invasões e, com amabilidade, interrompeu seu trabalho para me mostrar a casa por dentro e por fora. A ruína estava por todos os lados. Boa parte da madeira e do reboco havia sido devorada por cupins e o cheiro de mofo em praticamente todos os cômodos era asfixiante. Quem quer que se animasse a alugar o imóvel teria de gastar uma fortuna em reformas e talvez por isso ele tenha demorado tanto tempo para, enfim, encontrar um locatário – o que só aconteceu, se não me falha a memória, em 2005.

Terminada a visita, lembro-me de ter saído a pé pela São Clemente anotando freneticamente no caderninho tudo o que eu havia visto e, o mais importante, de ter rabiscado uma planta do casarão, adaptando a ele o que eu havia imaginado para a casa de leilões do livro. Não custa lembrar que, na época – segundo semestre de 1999 – estávamos já às voltas com as celebrações dos 500 anos de descobrimento do Brasil, que aconteceria, oficialmente, em abril do ano seguinte. Era, inegavelmente, o assunto do momento e entre os que achavam que havia, sim, o que comemorar, apesar de todos os problemas, estava eu. A iniciativa de decorar a Casa Quintanilha com elementos que enalteciam as cores e a simbologia nacionais foi uma consequência direta desse espírito. Não sei se eu teria tido a mesma ideia, caso houvesse começado o livro dois anos antes ou dois anos depois. O certo é que funcionou e, mais ainda, tornou-se um dos aspectos mais apreciados da ambientação da trama. De cada cinco e-mails que recebo com comentários ao livro, pelo menos um menciona  o interior “ufanista” da Casa Quintanilha.

Por essa razão, decidimos publicar esse post dedicado à Casa Quintanilha de Leilões, reproduzindo trechos de O VÉU em que ela é descrita, acompanhadas de imagens do casarão na vida real e de como ele seria caso ali, de fato, vivesse uma família devotada ao comércio e à divulgação da arte brasileira.

Luis Eduardo Matta


(…) O magnífico palacete em estilo neoclássico europeu que abrigava a Casa Quintanilha possuía mil e seiscentos metros quadrados distribuídos em dois andares. Sua decoração era inspirada numa visão romântica e mitificada da gênese brasileira, representada por elementos folclóricos que enalteciam o exotismo, a exuberância tropical e as riquezas naturais do país. A começar pelo símbolo da empresa, reproduzido numa ostentosa estatueta de bronze, isolada sobre um pedestal de mármore no vestíbulo da entrada: um indígena de cocar, agachado, de perfil e com um arco e flecha em uma das mãos.

A alegoria também compunha — ainda que oferecendo uma perspectiva bastante inusitada para a caracterização de um silvícola — um amplo e colorido vitral art nouveau de seis metros de comprimento por cinco de altura no fundo do grande salão, onde era montada a tribuna de jacarandá da qual Araci Quintanilha comandava os pregões. O vitral retratava com requinte uma mulher de pele clara e feições ibéricas, envergando uma veste branca e um cocar de penas amarelas, sentada soberana num trono de mármore, com a mão direita pousada sobre um globo, rodeada pela mata tropical e por exemplares da fauna brasileira, como o tucano, a arara e o jacaré do Pantanal. Encomendado por Emílio Quintanilha, amante da cultura indígena, a um grupo de jovens estudantes da Academia Nacional de Belas Artes, por diversas vezes, esteve no cerne de debates afiados entre críticos de arte e frequentadores dos leilões. Os admiradores da obra costumavam ressaltar sua “vibrante simbologia”, enquanto os detratores, em maior número, torciam-lhe solenemente o nariz, abismados com sua exagerada profusão de cores, seu traçado “inegavelmente naïf” e, principalmente, sua temática, que muitos desqualificavam como “patriotada brega”, “pajelança ridícula” e outros impropérios. Os mais ferozes estendiam as críticas à própria família Quintanilha, sobretudo depois que Araci, no começo de 2004, comandou um leilão vestindo um terninho verde-escuro e com uma echarpe amarela cingindo os ombros. Uma colunista social tachou-a maldosamente de “leiloeira canarinho”, apelido que ainda hoje era pronunciado, sempre pelas suas costas e em tom pejorativo.

Por todo o casarão, o piso de marchetaria exibia mosaicos com uma ampla variedade de madeiras nativas da Amazônia e da Mata Atlântica, como o mogno, que também estava presente nos lambris que revestiam as paredes, nos rodapés e nos batentes e alisares das portas. A mobília, clássica e pesada, era composta, na maioria, por peças dos séculos XVIII e XIX. Os tapetes revezavam-se entre persas e arraiolos e seis vistosos lustres em alabastro com pingentes de cristal compunham o teto. Nos cômodos ao redor do grande salão, pesadas cortinas de veludo verde-musgo, encimadas por bandôs amarelos ornavam as altas janelas de pinho-de-riga. Antúrios e costelas-de-adão de folhas largas e escuras brotavam de dois belos cachepôs de porcelana pintados com motivos tropicalistas, cada qual colocado a um lado do portal que dava acesso ao salão(…).

Edney Silvestre entrevista Luis Eduardo Matta no Espaço Aberto Literatura

Luis Eduardo Matta (à esq.) foi um dos entrevistados de Edney Silvestre, no Espaço Aberto Literatura de 19 de fevereiro de 2010, na GloboNews. Entre os assuntos abordados, literatura de entretenimento e o thriller no Brasil. Matta discorreu, ainda, sobre o seu sétimo livro, O VÉU – um thriller de mistério, publicado pela Primavera Editorial, no qual os bastidores do rico mercado de arte se cruzam com as sórdidas entranhas da turbulenta política do Irã. Felipe Pena, jornalista, professor da Universidade Federal Fluminense, doutor em literatura pela PUC-Rio e pós-doutor em semiologia pela Sorbonne, também participou do descontraído bate-papo com Edney Silvestre, gravado na Livraria da Travessa do Leblon, no Rio de Janeiro.

Em O VÉU, a narrativa eletrizante de Luis Eduardo Matta leva o leitor a “cenários” distintos como Rio de Janeiro, Teerã e Genebra. O ponto de partida é o leilão, no Brasil, de uma misteriosa tela a óleo, chamada “O Véu”. Condenado por lideranças muçulmanas por retratar uma mulher seminua usando o véu islâmico, o quadro tem uma trajetória marcada por sucesso, polêmica, intriga e tragédia. Diversas pessoas tiveram a morte associada à obra – inclusive o pintor, Lourenço Monte Mor. Resultado de minuciosa pesquisa sobre o Irã e o mercado de arte, O VÉU é uma obra atual, que transpôs para a ficção a história recente de um país marcado pela polêmica. O autor, inclusive, aborda as eleições presidenciais iranianas realizadas em junho de 2009.

A cada edição, o Espaço Aberto Literatura recebe nomes consagrados e novos talentos da literatura nacional e estrangeira; um espaço nobre que reúne escritores, poetas, ensaístas e tradutores.

A entrevista está disponível no site da Globonews. Para assistir, é só clicar aqui.

A sombria véspera do leilão de “O Véu”

Rio de Janeiro, junho de 2009

Chovia forte desde o entardecer. De repente, uma sucessão de lampejos encobertos pelo nevoeiro gelado clareou o topo do Corcovado, enquanto os estrondos dos trovões reverberavam no ar. A estátua resplandecente do Cristo Redentor surgiu momentaneamente por entre uma cortina densa de nuvens, parecendo debater ‑se na vã tentativa de permanecer heroicamente visível em meio à vastidão escura, mas o céu noturno não tardou a ocultá‑la novamente, derrotando, assim, a última trincheira que ainda resistia à assustadora entrada antecipada do inverno úmido na cidade do Rio de Janeiro.

O mar estava em fúria e ameaçava repetidas vezes engolir a areia das praias. Um vendaval cortante e pegajoso, embalado pela chuva, alastrava ‑se pelas ruas encharcadas e melancólicas. O Rio de Janeiro, vazio, silencioso, parecia abandonado à própria sorte.

Trecho da abertura da primeira parte de O VÉU, na véspera do leilão que influenciará toda a trama.

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