
Em agosto de 1999, com o esboço de O VÉU razoavelmente estruturado e as primeiras pesquisas já em andamento, sai às ruas do Rio de Janeiro a fim de encontrar os cenários que eu imaginara para a trama. Foram duas semanas de andanças. Minha principal preocupação – comum a todos os meus livros – era fazer com que a história parecesse o mais real possível. Logo, os cenários precisariam estar fortemente conectados à realidade. Foi quando, numa tarde perambulando por Botafogo, encontrei no final da rua São Clemente, quase na divisa entre Botafogo e Humaitá, o casarão ideal para abrigar a Casa Quintanilha de Leilões, o cenário mais emblemático de O VÉU.
A casa estava desocupada e seu abandono era visível, embora não lhe ofuscasse a opulência. Havia, na entrada, uma placa de “aluga-se”, o que era um bom sinal, já que se a casa estivesse à venda correria o risco de ser demolida, o que em nada interessava ao meu projeto. Alguns dias depois, voltei ao local munido de um caderno pequeno e de uma caneta, para anotar todos os detalhes arquitetônicos e tentar reproduzir em palavras a atmosfera da área. Ao chegar, um senhor varria as folhas da calçada em frente. Era uma oportunidade de ouro. Apresentei-me a ele, disse que estava interessado em alugar a casa e perguntei se poderia conhecê-la por dentro. Ele era uma espécie de caseiro, contratado para manter o jardim relativamente limpo, vigiar e impedir invasões e, com amabilidade, interrompeu seu trabalho para me mostrar a casa por dentro e por fora. A ruína estava por todos os lados. Boa parte da madeira e do reboco havia sido devorada por cupins e o cheiro de mofo em praticamente todos os cômodos era asfixiante. Quem quer que se animasse a alugar o imóvel teria de gastar uma fortuna em reformas e talvez por isso ele tenha demorado tanto tempo para, enfim, encontrar um locatário – o que só aconteceu, se não me falha a memória, em 2005.
Terminada a visita, lembro-me de ter saído a pé pela São Clemente anotando freneticamente no caderninho tudo o que eu havia visto e, o mais importante, de ter rabiscado uma planta do casarão, adaptando a ele o que eu havia imaginado para a casa de leilões do livro. Não custa lembrar que, na época – segundo semestre de 1999 – estávamos já às voltas com as celebrações dos 500 anos de descobrimento do Brasil, que aconteceria, oficialmente, em abril do ano seguinte. Era, inegavelmente, o assunto do momento e entre os que achavam que havia, sim, o que comemorar, apesar de todos os problemas, estava eu. A iniciativa de decorar a Casa Quintanilha com elementos que enalteciam as cores e a simbologia nacionais foi uma consequência direta desse espírito. Não sei se eu teria tido a mesma ideia, caso houvesse começado o livro dois anos antes ou dois anos depois. O certo é que funcionou e, mais ainda, tornou-se um dos aspectos mais apreciados da ambientação da trama. De cada cinco e-mails que recebo com comentários ao livro, pelo menos um menciona o interior “ufanista” da Casa Quintanilha.
Por essa razão, decidimos publicar esse post dedicado à Casa Quintanilha de Leilões, reproduzindo trechos de O VÉU em que ela é descrita, acompanhadas de imagens do casarão na vida real e de como ele seria caso ali, de fato, vivesse uma família devotada ao comércio e à divulgação da arte brasileira.
Luis Eduardo Matta
(…) O magnífico palacete em estilo neoclássico europeu que abrigava a Casa Quintanilha possuía mil e seiscentos metros quadrados distribuídos em dois andares. Sua decoração era inspirada numa visão romântica e mitificada da gênese brasileira, representada por elementos folclóricos que enalteciam o exotismo, a exuberância tropical e as riquezas naturais do país. A começar pelo símbolo da empresa, reproduzido numa ostentosa estatueta de bronze, isolada sobre um pedestal de mármore no vestíbulo da entrada: um indígena de cocar, agachado, de perfil e com um arco e flecha em uma das mãos.

A alegoria também compunha — ainda que oferecendo uma perspectiva bastante inusitada para a caracterização de um silvícola — um amplo e colorido vitral art nouveau de seis metros de comprimento por cinco de altura no fundo do grande salão, onde era montada a tribuna de jacarandá da qual Araci Quintanilha comandava os pregões. O vitral retratava com requinte uma mulher de pele clara e feições ibéricas, envergando uma veste branca e um cocar de penas amarelas, sentada soberana num trono de mármore, com a mão direita pousada sobre um globo, rodeada pela mata tropical e por exemplares da fauna brasileira, como o tucano, a arara e o jacaré do Pantanal. Encomendado por Emílio Quintanilha, amante da cultura indígena, a um grupo de jovens estudantes da Academia Nacional de Belas Artes, por diversas vezes, esteve no cerne de debates afiados entre críticos de arte e frequentadores dos leilões. Os admiradores da obra costumavam ressaltar sua “vibrante simbologia”, enquanto os detratores, em maior número, torciam-lhe solenemente o nariz, abismados com sua exagerada profusão de cores, seu traçado “inegavelmente naïf” e, principalmente, sua temática, que muitos desqualificavam como “patriotada brega”, “pajelança ridícula” e outros impropérios. Os mais ferozes estendiam as críticas à própria família Quintanilha, sobretudo depois que Araci, no começo de 2004, comandou um leilão vestindo um terninho verde-escuro e com uma echarpe amarela cingindo os ombros. Uma colunista social tachou-a maldosamente de “leiloeira canarinho”, apelido que ainda hoje era pronunciado, sempre pelas suas costas e em tom pejorativo.

Por todo o casarão, o piso de marchetaria exibia mosaicos com uma ampla variedade de madeiras nativas da Amazônia e da Mata Atlântica, como o mogno, que também estava presente nos lambris que revestiam as paredes, nos rodapés e nos batentes e alisares das portas. A mobília, clássica e pesada, era composta, na maioria, por peças dos séculos XVIII e XIX. Os tapetes revezavam-se entre persas e arraiolos e seis vistosos lustres em alabastro com pingentes de cristal compunham o teto. Nos cômodos ao redor do grande salão, pesadas cortinas de veludo verde-musgo, encimadas por bandôs amarelos ornavam as altas janelas de pinho-de-riga. Antúrios e costelas-de-adão de folhas largas e escuras brotavam de dois belos cachepôs de porcelana pintados com motivos tropicalistas, cada qual colocado a um lado do portal que dava acesso ao salão(…).
11 de maio de 2010
Categorias: artes plásticas, O Véu, Rio de Janeiro . . Autor: oveu . Comments: 4 Comentários